Comunidades de apoio mútuo como espaços de revitalização do sonhar

No vídeo-ensaio Essa merda tá bem fodida! O que podemos fazer? (Shit’s totally fucked: what can we do?), Dean Spade define o apoio mútuo da seguinte maneira:

“Apoio mútuo é quando as pessoas se reúnem para atender às necessidades básicas de sobrevivência umas das outras com um entendimento comum de que os sistemas em que vivemos não vão atender às nossas necessidades e podemos fazer isso juntos AGORA MESMO! Os projetos de apoio mútuo são uma forma de participação política na qual as pessoas assumem a responsabilidade de cuidar umas das outras e mudar as condições políticas, não apenas por meio de atos simbólicos ou pressionando seus representantes no governo, mas na verdade construindo novas relações sociais que são mais sobreviventes”

Até o começo desse ano, Solidariedade era para mim uma palavra vazia. Que nem aqueles retratos antigos, sabe? A gente acha bonito, gosta de colocar de enfeite na nossa parede. Mas não fazemos nem ideia da onde veio e quem pintou. Para que um conceito faça sentido pra mim, sinto a necessidade de vê-lo, senti-lo na minha pele. Daí é quase automático: “Aaah, é isso que estavam querendo dizer com aquela palavra!”.

As comunidades em que participei nesse ano deram a substância que faltava a essas palavras: Solidariedade, Apoio Mútuo, Cooperação — tornaram-se conceitos. Vou falar em especial de duas.

Há cerca de quatro meses, co-criei uma comunidade de aprendizagem em educação com amigas e amigos educadoras(es). Começamos assim: compartilhando nossas trajetórias, nossa história, nossos ideais, nossos medos, nossas frustrações. O potencial de acolhimento da comunidade foi algo que surpreendeu a todos nós. Uma das educadoras da comunidade me disse outro dia: “eu gostei de você ter me chamado, porque eu me sinto importante!”. Muitas das pessoas da comunidade têm sérias críticas à formação “oficial” que tiveram. Uma formação distante, dissociada da prática, ausente, que não levava em conta os sentimentos e os pensamentos dos formandos. A comunidade que criamos é uma maneira de nos apropriarmos nós mesmos da nossa formação, decidindo os temas, avaliando nossos encontros, oferecendo oficinas, compartilhando saberes — tudo isso em uma atmosfera de acolhimento, amizade e honestidade.

Na última reunião dos Sementeiros (comunidade do MoL), após a apresentação do Farah e da Sophia, vendo todos aqueles comentários apreciativos, o reconhecimento e o apoio prático e espiritual que recebiam, veio-me o pensamento: os Sementeiros são uma comunidade de apoio mútuo. A experiência de participar da comunidade é como saltar num trampolim. Sentimo-nos acolhidos, reconhecidos, à vontade, impulsionados. Todas as pessoas da comunidade têm ou pretendem ter projetos contra-corrente, das mais variadas áreas: educação, coaching, espiritualidade, permacultura…

Quem se dedica a esse tipo de projeto sabe que é muito fácil abandoná-los. Medo de fracasso, insegurança, desmotivação do ambiente, sentimento de solidão, instabilidade financeira… motivos não faltam para considerarmos essas ideias e projetos — que muitas vezes vêm da parte mais interessante de nós mesmos — apenas “arroubos da juventude”, um “sonho bobo” ou uma “utopia”. Desistimos e nos conformamos ao que a Realidade tem a nos oferecer. As estratégias manjadas, as vias pelas quais “todo mundo” anda, as tendências dominantes, a estrutura, o “normal”. Quando menos percebemos, desistimos de sonhar, jogamos aquelas ideias e sentimentos no saco das impossibilidades desejáveis, vestimos a máscara de “membro contribuinte, sério e responsável da sociedade” e vamos lá fazer as coisas que as pessoas sérias e responsáveis fazem.

O apoio mútuo nasce da constatação da nossa fragilidade, da nossa vulnerabilidade. Porque sabemos que não somos Sujeitos com sentimentos, valores e atitudes independentes do nosso meio. Sabemos que, nesse mundo, estamos inevitavelmente expostos uns aos outros, à mercê dos nossos encontros com o mundo. Sabemos que muitos dos nossos abandonam projetos e sonhos porque se sentem sozinhos, porque as pessoas com quem convivem os desestimulam diariamente. Ninguém encontra apenas em si a força necessária para bancar um modo de vida diferente. Ser forte não significa que nunca vamos tomar um tombo, mas que, quando a queda vier, temos lugar pra cair. E, quando cairmos, teremos colo, escuta e sugestões práticas de como e onde nos refazer. Isso é apoio mútuo.

E aí vem os efeitos colaterais de participar dessas comunidades. Os “por que não?” começam a fazer parte da nossa vida; começamos a ser mais ousados, irreverentes, nossa tolerância com situações impotentes diminui, nos autorizamos a ser mais imaginativos, sonhadores, grandes viventes; adquirimos uma firme convicção de que as coisas podem ser de outro modo — não porque ouvimos falar em algum lugar, mas porque sentimos na nossa própria pele.

“O apoio mútuo nos transforma: deixamos de ser observadores passivos e passamos a ser construtores do novo mundo que desejamos e precisamos”

Um beijo no fundo do coração a todas as pessoas que participam comigo dessas comunidades. Vocês são demais!

Vídeo (legenda em espanhol): https://www.youtube.com/watch?time_continue=441&v=PopmGAvsggg&feature=emb_title

A quem se interessar pelo tema do apoio mútuo, recomendo o livro de Piotr Kropotkin — Ajuda mútua: um fator de evolução.

Há também a obra de um brasileiro que estuda a genealogia dos “mutirões” como cultura de apoio mútuo: Clovis Caldeira — Mutirão.

Fonte: https://medium.com/masters-of-learning/comunidades-de-apoio-m%C3%BAtuo-como-espa%C3%A7os-de-revitaliza%C3%A7%C3%A3o-do-sonhar-a16047df6272

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