Escola, Desejo e Apatia

Olhares vagos, distantes, cabeças baixas, suspiros de tédio, celulares, fones de ouvido – cenário cada vez mais fácil de se encontrar numa sala de aula de uma escola pública. Nos conselhos de classe, as e os professores têm a chance de classificar os estudantes com ‘baixo rendimento’ em três: dispersos, faltosos ou apáticos. Apatia, pois é.

Com a graça de Aurélio, apatia é: Condição de quem não se comove, não demonstra sentimentos nem interesses: tratou o assunto com apatia.

A apatia é algo muito presente em muitas salas de aula. Jovens parecem cada vez mais desmotivados, desinteressados, desengajados e alheios nas nossas classes.

“Isso é coisa dessa geração”.

Éramos menos apáticos no passado? Será mesmo?

Antes, de fato, não havia celulares. E seria estúpido de nossa parte considerar que os smartphones não têm nenhum efeito na nossa atenção, na nossa memória, no nosso modo de nos interessar pelas coisas.

Tomemos o Tik-Tok como exemplo paradigmático da nossa subjetividade dos anos 20 do século XXI. Vídeos extremamente curtos, conteúdo imediato sem necessidade de pesquisa ou escolha (o que os estudiosos do comportamento chamam de ponto de decisão), um único gesto de ‘próximo’ sem fim nem objetivo (endless scroll), um algoritmo que capta rapidamente suas preferências e que está sempre pronto a te apresentar aquilo que você gosta (‘This is For you’). A construção de um tempo acelerado e acelerável (a tecla: 1,5 – 2x). Dizemos que a nossa atenção têm se tornado mais fraca, mais débil, menos sustentável. O que acontece é, na verdade, que nossa atenção se torna hiperexigente: para que mantenhamos e sustentemos nossa atenção em algo, necessitamos cada vez mais estímulos diferenciados (efeitos, distorsões, brilhos, montagens) e renovados constantemente, em intervalos de 3 a 5 segundos. É como se nossa atenção se tornasse viciada (há muitos estudos que comparam o Tik-Tok com o crack e a cocaína) em receber estímulos novos e ‘frescos’.

De fato, o celular e seus apps está longe de ser um mero objeto como qualquer outro. É um dispositivo que altera nossas relações com a realidade, com os outros e com o mundo. Mas, na sala de aula, não seria o celular apenas mais um elemento na disputa atencional? Os apps de hoje, de um certo ponto de vista, cumprem a mesma função que os cadernos de desenho, os rabiscos na mesa, os bilhetinhos, os cochinhos e os diversos desvios atencionais de ‘ontem’ cumpriam. Quer sejam desviantes analógicos, quer sejam digitais: são fugas. Mas, é claro, as semelhanças param por aí: os apps, diferente do desenho, do rabisco e do bilhetinho, são plataformas criadas para capturar nossa atenção e favorecer nossa estadia nelas pelo máximo de tempo possível. As ‘fugas’ de antes, ao menos, dirá o saudosista, exigiam mais criatividade por parte dos alunos. Hoje, só têm que apertar um botão e é como se pudéssemos olhar por uma janela “sem saber muito bem o que está acontecendo, mas onde tudo passa muito rápido e, ao mesmo tempo, somos fisgados imediatamente” [].

Mas e aí? Como é que a escola, do jeito que é, poderia competir com o Tik-Tok, com o Instagram, com o Free Fire? Entre a professora com sua matéria monótona e a tela do celular com uma bomba de estímulos novinhos e recompensadores, fica até injusto fazer o páreo. Também não adianta amaldiçoar as tecnologias e dizer que era melhor antigamente.

Apatia – em relação a quê?

As mudanças tecnológicas não são, também, a última palavra na questão da apatia. O fracasso escolar como objeto de estudo da pesquisa educacional data dos anos 70/80 []. A escola, em seu modo de funcionamento mesmo, já é ela mesma produtora de apatia: somos obrigados a frequentar um lugar em que somos contabilizados como um número, examinados a partir do que sabemos e do que ignoramos, rotulados com “suficiente” ou “insuficiente”, somos apresentados a um monte de coisas que não fazem o menor sentido para nós e, por fim, enfiam um monte de trabalhos e provas na gente para poder ‘passar de ano’. Essa estrutura já é, independentemente de qualquer tecnologia, sufocante, limitadora e enjaulante. A apatia, o corte autoimposto nos fluxos do desejo, é só mais uma das estratégias de sobrevivência nesse lugar. Educadores e escolas acometidos por uma espécie de narcisismo preguiçoso, no entanto, só verão o problema nos outros, sem nunca voltar o olhar para si mesmos: se eles não se adaptam a mim, o problema são eles, não eu!

Compreender a apatia não como um dado natural, mas como uma estratégia de defesa, é fundamental nessa conversa. Se o mundo não se importa comigo, por que vou me importar com ele? Se eu tento fazer o que quero e me frustro, pra que vou continuar querendo? Se me obrigam a fazer um monte de coisas nas quais não vejo nenhum sentido, por que vou compor com isso? “Não compensa”, como dizem meus alunos.

Outra coisa: será que essa palavra ‘apatia’ faz jus à realidade escolar vivida pelos alunos, ou será que uso essa palavra porque ele é apático em relação a mim? Consideremos um aluno meu que, nas minhas aulas, não faz absolutamente nada nem demonstra um pingo de interesse. No intervalo, não é difícil vê-lo super animado, esboçando diversas reações de tristeza, espanto e alegria, quando perto de uma menina que ele gosta. É visível e gritante que está apaixonado por ela. Ué, pra onde foi aquele menino apático na minha aula? Por que o desejo dele não entra na sala? Por não conseguir produzir o mesmo efeito nele na minha aula, tendo a dizer: “ah, mas esse moleque não quer saber de nada”. Como assim não quer saber de ‘nada’?

Um dia estava eu tentando fazer um jovem se interessar pela reflexão sobre o conceito de ‘poder’, e questionando-o algumas vezes, ele me respondeu: “ah, professor, eu quero mesmo é saber da Nayara”. Lógico, pensei comigo, a Nayara deve ser muito mais interessante do que o poder. Todo mundo quer saber de alguma coisa. A questão é outra: nós somos capazes de saudar nossos alunos em seus desejos? Somos capazes de encontrar nossos alunos no movimento de seu desejo?

Referências:

Efeitos psicológicos do Tik Tok – https://amenteemaravilhosa.com.br/efeitos-psicologicos-do-tik-tok/

A compreensão histórica do fracasso escolar no Brasil – https://www.scielo.br/j/cp/a/9sXhzGqdCPD5z7Ppyk4x3qc/?format=pdf&lang=pt

New report reveals TikTok acts on children’s brains like a ‘candy store’ – https://nypost.com/2022/04/08/tiktoks-impact-on-childrens-brains-likened-to-candy-store/

Autor: Tarik Fraig
Fonte: https://jardimfilosofico.com/escola-desejo-e-apatia/

COMPARTILHE ESTE CONTEÚDO

Share on facebook
Share on twitter
Share on whatsapp