Pablo Pessoa

Pablo Pessoa

Biólogo, mestre em Política e Gestão da Sustentabilidade e doutor em Arquitetura e Urbanismo.

Lições Climáticas da Pandemia: Cidades Comestíveis e Convivências Parasitárias

As paisagens humanizadas a que chamamos cidades são a expressão mais bem acabada do conflito natureza-cultura.

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Urbanidade e modernidade parasitárias

“A solidão mora aqui / E a cidade é sem fim / Qual a tua janela” (Frenesi)

O urbano é um fenômeno, uma expressão de naturezas diversas. Mas a urbanidade, a qualidade que tentamos imprimir aos espaços urbanos (e apreender deles), ela saiu, digamos, abalada de seu encontro histórico com a modernidade. A história das cidades, bem antes da idade moderna, confunde-se com a das civilizações e impérios, sempre expandindo e incorporando territórios e paisagens remotas e vizinhas, num aparente estado permanente de fome e desordem alimentar.

As cidades todas talvez não tenham conhecido ainda saciedade porque as culturas que as fundam, constroem e mantém também não dispõem desta inovação – e de seus estranhos aparatos tecnológicos – chamada “suficiência”. A urbanização, enquanto processo de modernização dos assentamentos humanos, levou este jogo de não-saciedade a outro nível, porque não só não dispõe de reguladores de crescimento, como também assumiu para si a tarefa distópica de fazer-nos levitar do solo, da terra e da Terra, a todo custo, dando-nos (a alguns de nós) o gostinho de descolamento do plano mundano, arranhando aqui e acolá os céus, arriscando aqui e acolá um voo e uma partida.

Brasília não tem a forma de um avião à toa. A cidade, completando agora seus 60 anos como símbolo brasileiro mais emblemático do planejamento e de um agir lógico-racional sobre o espaço, bem poderia ter sido projetada pelos engenheiros da Embraer. Um avião não é como um foguete e os volumes dos edifícios do plano piloto, privados do estirão da adolescência pelo tombamento, nos ensinam que verticalizar-se não é a única forma de garantir decolagem. A diversidade das estratégias mecânicas performadas como design não torna nenhuma destas criações menos máquina.

Certa vez, passeando pelo Setor de Diversões Norte de Brasília, tive uma sensação estranha ao cruzar a linha que demarcava aquela unidade de zoneamento. Até antes da transgressão, fazia um dia bom e eu, coincidentemente (ou não), estava me divertindo. Ao abandonar o setor, talvez eu devesse considerar algum outro estado de humor, não? A simples dúvida e, possivelmente, o fato de ter me mudado para capital sem ter lido o manual, fez-me sentir um verdadeiro transgressor.

Mas não é porque Brasília nasceu de um raro brado heróico modernista que situações como essa ocorrem a seus “usuários”. As “experiências de usuário” ocorrem frequentemente a sujeitos em todas as cidades, tenham sido intensamente planejadas ou não. Uma vez que os espaços urbanos assumem por excelência o papel de ambientes construídos, as decisões de uso e ocupação, de aproveitamento do espaço, tendem a expressar os padrões mentais e as lógicas com que operam aqueles que organizam suas intervenções. E a modernidade processou em todos nós uma padronização mental segundo lógicas binárias, de zeros e uns, de usos e monofunções frequentemente auto-excludentes.

Dentre os muitos desdobramentos da aplicação de uma lógica de modernização socioespacial, um deles parece especialmente relevante ao desnudamento da condição de extrema vulnerabilidade urbana frente à crise pandêmica: a urbanização como a conhecemos constituiu-se amplamente como negação da natureza. Assim, as cidades são a expressão mais bem acabada do conflito natureza-cultura, característico da saga epistêmica de acúmulo de conhecimentos e saberes instrumentais (úteis) e eficazes à realização do conjunto de tarefas de dominação que nossos espíritos heróicos cumprem sempre projetar. Felizmente, além da pura resistência, muitos dos gargalos urbanos produzidos à luz de nossas precárias compreensões sobre nós mesmos têm sido enfim problematizados e revistos a fim de promover ambientes de maior complexidade, versatilidade, mistura de funções e diversidade.

Por outro lado, infelizmente, não há processo reflexivo que dê conta de converter os vetores de urbanização convencional e de modernização dos assentamentos humanos em forças de transformação emancipatórias (não-dominadoras). Quaisquer soluções empregadas para garantir mais natureza urbana serão meramente paliativas. Explico. Em 1982, o ecólogo Zev Naveh propôs a conceituação de cidades como tecnoecossistemas, um tipo de sistema caracterizado por um metabolismo próprio das sociedades industriais. A lógica de produção e consumo industriais, diferente do que se observa em sistemas naturais, mobiliza processos lineares, pobremente interconectados, intensivos no consumo de energia e com baixos níveis de ciclagem das matérias.

Estes tipos de sistema não podem perdurar sem um entorno que os alimente constantemente. Aqui podemos citar dois exemplos práticos: a necessidade de despachar o lixo produzido pelos grandes centros urbanos para outras cidades, até mesmo países, e a necessidade de importar alimentos de outras cidades como as rurais. Por esse motivo, Naveh considerava as cidades como entidades parasitárias de outros ecossistemas, remotos ou vizinhos. Em outras palavras, cidades não gozam de autonomia sistêmica, são altamente dependentes de funcionalidades naturais externas.

Este nível de especialização funcional estabelece um padrão de relação desarmônica entre sistemas urbanos e os demais ecossistemas, que, por vezes, leva à exaustão das capacidades de provimento e à quebra da resiliência dos sistemas naturais demandados pelas cidades. Tal como um parasita que exaure seu hospedeiro.

Superposição, sobrevivência e as coisas que nem coisas são

Neste momento, arquitetos, urbanistas, engenheiros, designers e um grupo mais amplo e heterogêneo, o dos planejadores (que, para mim, inclui, além dos profissionais com esta inclinação, todos os cidadãos) estão às voltas com debates sobre a qualidade agora à prova dos habitats humanos. A janela de revisão de saberes e práticas aberta pela pandemia abrange os atuais e futuros padrões construtivos das moradias e de seus contextos, pensando tanto as condições interiores atuais de confinamento, como a capacidade dos edifícios e das residências (formais e informais) de garantirem ventilação e iluminação naturais como critérios de saúde e dignidade.

Com maior ênfase, têm sido abordados aspectos sanitaristas, de higiene e salubridade, buscando retomar as lições de pandemias anteriores, como a da gripe espanhola do início do século passado. Um dos principais desdobramentos atribuídos à vivência nacional daquela pandemia diz respeito à construção de um senso comum favorável à necessidade de criação de um sistema único de saúde, garantido pelo Estado, e também de um ministério específico para tratar das questões de saúde pública. Pouco antes da chegada da gripe ao Brasil, a maioria das obras historiográficas que tratam de saneamento na Primeira República apontam aí uma sensibilização quanto ao tema e consideram o início do governo de Rodrigues Alves (1902-1906) um marco para o ganho de importância do saneamento na agenda republicana.

Tal agenda abre para nós a “Era do Saneamento”, que tenta dar conta também das condições sanitárias das populações rurais (à época, abandonada às endemias, que as acometiam com cerca de 70% de vítimas de amarelão/ancilostomose; 40% de malária; e 15% com Doença de Chagas) mas que, nas capitais, suas ações e projetos assumem um tom “civilizador” das paisagens urbanas. É relevante destacar este termo, porque ele nos informa que o elemento problemático da modernização urbana já estava presente como ideia-força nas origens do movimento sanitarista brasileiro (até hoje tateando os meios de universalização do acesso ao básico): o estabelecimento de uma noção de higiene binária, que enxerga a água, os cultivos de alimentos (e criação de animais) e a natureza em geral como fontes de contágio e de transmissão de doenças.

Guerra semelhante à que estamos travando agora contra o novo coronavírus, nossa cultura vem travando com a água e com a natureza nos espaços antropizados [3] (e, a bem da verdade, com tudo o que nossa visão venha a conceber como problemático ou incômodo) desde a fusão das culturas neolítica e paleolítica que deu origem às primeiras cidades. A forma binária de perceber a dualidade e suas polaridades como auto-excludentes nos priva da destreza de despejar a água de banho de um bebê sem poupá-lo também do despejo.

A sabedoria contida neste dizer popular é tão oportuna que já nos deixa apresentados aos protagonistas desta reflexão: o bebê e a água. Nesta ideia de limpeza, o banho representa um fluxo de sujeira do bebê (inicialmente sujo) para a água (inicialmente limpa). Tanto ao bebê como à água esta situação se repetirá nos ciclos hidrológico e da vida. A razão binária não percebe este movimento solidário entre os corpos hídricos e biológicos, porque nela só cabe ser uma coisa ou outra. Mas, no ato do banho, água e bebê são sujos e limpos ao mesmo tempo. E é esta insensibilidade que nos faz conceber processos lineares e não cíclicos. Uma vez concluído o banho, no ato efetivo do despejo, normalmente encontra-se alguma forma de drenar a água e manter a salvo a criança. Mas, ainda assim, ver a água suja como apenas suja (material de descarte) e o bebê limpo como alguém que não tornará a encontrar aquelas moléculas de água em situação de banho, isto nos põe – em extrapolações de tempo e espaço – a despejar os dois.

Há um debate em aberto nas ciências biológicas (e que provavelmente não se resolverá) sobre a admissão de vírus como seres vivos ou não. Bem, se acompanharmos o entendimento mais consensual, de que vírus não são vivos porque se comportam como parasitas intracelulares obrigatórios, cabe então nos perguntarmos contra quem exatamente estamos lutando. Não seria a primeira vez que enquanto humanidade nos flagraríamos lutando contra uma força inanimada. Estamos eternamente em guerra contra a pobreza, a desigualdade, a injustiça, a fome, o analfabetismo, a miséria, a seca.

A peleja segue contra furacões, terremotos, erupções vulcânicas, tempestades, tsunamis, inundações, não? Não, essas ameaças se processam em escala e dinâmicas tão complexas e potentes que, diante delas, resta-nos uma gestão de risco restrita ao nível de sistemas de previsão e alerta. Correção, mesmo que nossas tentativas estruturais de enfrentamento de cheias e inundações, por exemplo, assumam a impossibilidade do controle, de uns anos pra cá temos finalmente revisado as estratégias de drenagem, de afastamento das águas, e passado a pensar e a propor um manejo de águas pluviais nos locais em que a chuva precipita. Ou seja, insistindo ou não no embate e no conflito, parece-me que, em todos os exemplos, se apostarmos nas vias do enfrentamento, nós perdemos.

Antinomia prenhe de autonomia

Retomando a ideia de progresso que descrevemos como uma marcha em linha e que nos põe empobrecidos e em guerra com tudo e com todos, temos leituras e recortes aos montes a nos dizer que nenhum reforço positivo do sistema (ou aceno de sucesso) poderá nos proteger. Tanto as lições da necropolítica climática quanto as do modelo de prosperidade crescentista anunciam um gradual descarte de nós feito os bebês e as águas de banho. As cidades tanto não sabem não crescer, quanto não sabem ainda não guerrear (interna e externamente).

Caso desejássemos tentar um outro modo de ser, valeria então já pontuar uma lição da crise pandêmica e do colapso climático anunciado: de que o quadro instaurado de decrescimento por desastre não exclui nem nos libera da tarefa de pensarmos um decrescimento por design, de efetivamente termos que imaginar e desenhar este caminho. Outra vez, não era “ou” (zero ou um), desastre ou design. Talvez desastre e design, porque somos como o gato em superposição real, solidária com os nossos, e realmente não precisa que alguém venha abrir a caixa-Terra para contabilizarmos vidas e mortes decorrentes desta prosperidade experimental.

Parece mesmo que a vida é este fluxo contínuo e aberto em estado real de simultaneidade e solidariedade e de superposição no imaginário. Considerando o como andava a vida antes da pandemia e, olhando deste ponto que dizem nem ser o mais alto da crise instaurada, nossa relação com o trabalho, com conseguir alguma renda para viabilizar sobrevivência, tudo isso soa a mim incrivelmente paradoxal: o estado de superposição da sobrevivência. Como dizer se andamos vivos ou mortos pelos papelões amarrotados, e sinalizados com “cuidado, frágil”, de nossas biografias?

Se vida é antinomia, coexistência de polaridades, penso que cabe a nós praticarmos uma higiene além daquela recém aprendida com as mãos. Cabe também praticarmos a higiene não do abandono seletivo, mas do contato sugestivo. Algo parecido com o que temos sido obrigados a desenvolver agora com as medidas de isolamento físico. Uma higiene capaz de integrar dualidades e tensões inconciliáveis. De lidar com esse vazio criado pela contemplação das coisas que não são puramente boas nem ruins, mas que estão vivas e fluem. Podemos acompanhar os aprendizados de Emanuele Coccia sobre a vida das plantas, estes seres que moldaram o mundo que habitamos sem dispor de mãos nem mobilidade. O clima (este sistema para nós em colapso), para ele, é o nome da estrutura da mistura, porque as plantas estão em profunda imersão. A seletividade que a modernidade opera, para elas não é opção.

Esta me parece uma pacificação possível para a vida de agora, a busca por uma boa mistura, um clima bom. Ela anuncia rotas de transição dos mal viveres aos bem viveres a partir de reflexões simples e não puramente racionais. Como quem vai provando o que há no mundo e pergunta-se: isto ou aquilo me é saudável e digno? E para nós, nos são? Disto deriva o desafio de descobrir como redesenhar dignidades agora que estamos privados dos motores da prosperidade crescentista, de nossa ostentosa mobilidade e do contato físico com os nossos e com o mundo.

Porque tudo o que é vivo tem que comer (seja a mistura saudável ou cheia de veneno), deixo como sugestão uma aproximação possível à convivência com as formas parasitárias, já que não cabe a nós vencê-las. Criarmos e mantermos, pois, sujeitos, comunidades e redes, nossa autonomia de alimentos, que, pelos processos naturais, operam sempre em abundância e não em escassez. Fazer isto, de modo que haja a nós suficiência e sobras aos comensais. Até que as formas parasitárias atuais (vírus, cidades, capitalismo, rentistas, corporações) abrandem sobre a gente suas dependências. Que as falências sucessivas ensinem os meios de harmonização, pois é da natureza dos parasitas tender a evoluir em benefício mútuo. A nós, heterótrofos urbanos, que não sabemos por onde começar a não crescer, é plantar o que pretender comer. Aí repousam, na cultura, no cultivo e no cuidado desta função vital elementar, a suficiência, a saúde e todos os seus reguladores.

Imagem: Time modefica.
Fonte: https://www.modefica.com.br/licoes-climaticas-da-pandemia-cidades-comestiveis-e-convivencias-parasitarias/

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