Tarik Fraig
professor, escritor e amante da filosofia
Onde está a filosofia no cotidiano das minorias?
Ahoy comunidade! Gostaria de compartilhar os caminhos da minha pesquisa com vocês. Toda ajuda é bem-vinda, viu?
Há mais ou menos um mês comecei um Círculo de estudos de filosofia com ex-estudantes: pessoas com quem me deparei em minhas aventuras professorescas na escola pública. Essa ideia surgiu de uma conversa com um dos estudantes com quem trabalhei no ano passado, o Gabriel (vou trocar os nomes de todos aqui). Terminado o nosso projeto do Núcleo de Filosofia, de 2019, acabamos por criar uma certa camaradagem, e conversávamos de vez em quando. O conteúdo dos nossos papos giravam ao redor de escola, sociedade, futuro, vida, filosofia, ser feliz, sonhos, rimas (o menino curte rimar!). Num dia desses, contando-me sobre os conflitos que tinha com os pais evangélicos, soltou-me ele naquele tom de naturalidade, como quem diz muito sem saber que o diz:
Tarik, por que Deus é branco?
Eu paralisei. Não só pelo profundo questionamento filosófico contido naquela tão simples pergunta, pelo imenso horizonte de criticização que ela abria (o Gabriel é um menino negro), mas também pela potência desvelada pelo próprio ato de perguntar. Naquele momento, tive uma sensação de: por que não tentamos fazer mais disso?
Percebi que esse contexto de pandemia era o momento perfeito pra eu tentar algo que sempre quis, mas que nunca consegui fazer dentro da escola pública: um círculo de estudos de filosofia. Não algo como uma “aula”, não algo que acontecesse no espaço da sala de aula, com a estrutura da sala de aula, no “tempo” escolar (pois a esse modelo obedecia o nosso projeto de até então).
Queria poder organizar com as/os estudantes uma atmosfera mais íntima, mais acolhedora, segura, aconchegante, onde pudéssemos ser nós mesmos — ou, fosse isso pedir muito, pelo menos um pouco mais sinceros, um pouco mais sensíveis, e um pouco menos preocupados com que opinião terão de nós. Não precisava ser muito. Bastasse um curto tempo e um pequeno espaço de estar-juntos, de partilha, de atenção mutuamente interessada — alguns minutinhos na semana em que pudéssemos praticar a fala com o coração.
Gabriel animou-se muito com a proposta. Quando lhe pedi que convidasse amigos seus para o grupo, no entanto, sua voz mudou para um tom desapontado: “Ish, mas ninguém da minha sala gosta de filosofia. ‘Cê não tem uns ex-alunos não, Tarik?”.
Tinha eu uns ex-alunos? Cavuquei minhas memórias nem tão velhas mas nem tão novas assim, pensei em quem mais poderia querer entrar numa coisa dessas. Lembrei-me dos primeiros anos que dei aula, ainda no PIBID (programa de iniciação à docência), posteriormente no núcleo de ensino de filosofia — os rostos dos jovens passando, os anos confundindo-se (imaginem quando ficar velho!). Quem estaria interessado nisso?
Vieram-me quatro rostos em particular. Pessoas com quem, apesar de todos os entraves institucionais, eu havia sentido alguma conexão. Que elas haviam algo a dizer a mim; e eu, a elas. Já sentiram isso? Uma eu dei aula em 2016. As outras duas de 2017, e uma última de 2019.
Convidei. E, para a minha surpresa, todas aceitaram de pronto. Cada convite foi único. Uma palavra, no entanto, permaneceu a mesma em todos: Filosofia. Estou te convidando para fazermos filosofia.
Cá está essa palavra com a qual eu já tive (e talvez ainda tenha) uma relação de amor e ódio. Filosofia? Que que isso tem a ver com a vida dessas pessoas? Uma trabalha das 08h às 17h; a outra, menina negra que teve depressão por conta de uma vida familiar turbulenta; a outra, lésbica que muito sofreu em contextos religiosos; o outro, um menino negro que se sente “um peixe fora d’água”… O que essa prática supostamente tão antiquada, aristocrática, eurocêntrica, branca, patriarcal, enfim — o que a filosofia teria de tão importante que valesse a pena torná-la a mais importante palavra do meu convite?
As palavras de um antigo professor meu me assombravam: a filosofia é um discurso fechado. Filósofos só escrevem pra outros filósofos. Não é coisa de qualquer um.
E, de fato, se eu te pedisse pra imaginar uma pessoa filósofa, que imagem te viria à cabeça? Não seria um homem, branco, velho, barbudo, que não trabalha e tem muito ócio pra poder ter em paz suas “crises existenciais” e “pensar na vida”? O que a filosofia tem a ver com essas e esse adolescentes — negros, mulheres, trabalhadoras, lésbicas — tão afastados desse arquétipo do Filósofo?
Ainda com todos esses pensamentos me dificultando a paz, eu escolhi adotar esse nome para nos reunir: filosofia. Por quê? Geralmente, na esquerda, todos os nomes e práticas que adotamos têm de servir a uma estratégia política maior. Qual a minha? Nenhuma em especial. É menos sobre coisas como utilidade ou estratégia e mais sobre ser grato. Ser grato a quem me fez bem. E, de fato, foi na filosofia que tive o privilégio de me sentir entre os meus.
E aqui entra o MoL. Fui interpelado por uma pergunta de aprendizagem. Pensei nela de várias maneiras, formulei, formulei e reformulei, até chegar em sua forma mais ou menos esculpida:
Onde está a filosofia no cotidiano das minorias?
Esse onde é tudo menos acidental. Ele substitui os “como levar”, “como traduzir”, “como tornar acessível” e afins. Como se a filosofia fosse um tipo de Saber, uma forma discursiva acabada, propriedade de um certo grupo, e tivesse que ser “levada” ou “traduzida” para um campo onde não exista — na vida dos pobres, dos negros, dos periféricos, dos marginalizados… e a lista só aumenta.
Minha pergunta será outra: onde está? Partirei do pressuposto — e reconheço que só nisso já há uma certa ousadia — que todos ali já tiveram em suas histórias experiências filosóficas, ora sendo assaltados por elas, ora criando-as eles mesmos. Daí que meu trabalho inicial não será o do tradutor, mas o do arqueólogo: escavar o que eles já têm e lá — em seu próprio território — encontrá-las!
E, é claro, sendo este um texto de filosofia, a questão que não poderia faltar: que diabos é a filosofia? O que é isso que eu quero encontrar? Não serei bobo o suficiente pra tentar responder em poucas linhas o que muitos dedicaram livros inteiros. Assegurada a modéstia, penso que não faria mal contar-lhes de uma intuição que tive. E aqui vai ela: a filosofia me parece um animal sorrateiro, daqueles que têm preferência por habitar certos tipos de lugar. Que lugares são esses? São os furos, as frestas, as brechas, os becos, os silêncios, os intervalos, os hiatos; ali no vazio entre um estímulo e a sua resposta “de sempre”, entre uma “visão de mundo” e o mundo mesmo, entre um corpo e o nome que lhe é próprio. A filosofia me parece habitar nas rachaduras do Destino.
Me parece uma bela visão, mas é tão só uma intuição. Que essa definição seja proveniente de “uma certa” filosofia e não da Filosofia como um todo — não me incomoda nem um pouco. Mas qual será a filosofia que de fato vamos encontrar (ou, ainda, criar)? Que tipo de prática filosófica está se tecendo nesses encontros do Círculo? Tudo isso ainda por verificar.
Compartilho com vocês também a nossa primeira dinâmica. Pedi-lhes que cada um trouxesse uma pergunta/problema filosóficos que lhes houvesse tocado profundamente. A partir delas montamos a nossa Agenda de estudos:
Tarik — O que é saúde?
Gabriel — Da onde o ser humano tirou a ideia de que Deus é branco?
Laís — O que é morrer?
Larissa — O que é ser livre?
(as outras duas ainda não se decidiram sobre as delas).
Sobre métodos: a cada encontro uma pessoa é a “Provocadora” da discussão, e é a responsável por trazer uma “bomba filosófica” (tomei o termo emprestado de uma amiga) — um agrupamento de reflexões/questionamentos/pensamentos/vídeos/textos/imagens que possam inspirar uma investigação coletiva. Veem vocês que eu nunca abro mão do meu pézinho autodirigido.
Aqui vão minhas ações de aprendizagem iniciais:
1 — gravar os encontros do Círculo de estudos para posterior estudo;
2 — agrupar referências/aliados para um conceito e uma prática decoloniais de filosofia;
3 — nos encontros, duas de nossas integrantes disseram que se sentiam como numa espécie de “terapia”. Revisar a relação entre filosofia e terapêutica na obra de Michel Foucault: A hermenêutica do sujeito.
Beijos e votos de boa jornada, pessoal!
Imagem: Colagem digital, Caio Miranda (@sisifo10), 2020.
Fonte: https://medium.com/masters-of-learning/onde-est%C3%A1-a-filosofia-no-cotidiano-das-minorias-43ee840c44aa