Melody Erlea
professora e consultora de estilo
Os dandys negros: a moda como forma de luta social
o sistema de moda ao qual estamos acostumados – que hoje engloba semanas de moda em grandes capitais, consumo de grifes, fast fashion e brechó, e constante mudança através de lançamento de tendências estéticas efêmeras que engatilham o consumo constante – é eurocêntrico, capitalista, patriarcal e colonizador. não é à toa que há tanta apropriação cultural e artística, não é à toa que moda transforma as mulheres em objetos e ornamentos, não é à toa que até hoje gente muito rica e muito branca comanda os bastidores, as notícias e o dinheiro que provém da moda.
situações como a de donata meirelles, ex-diretora da vogue brasil, que celebrou seu aniversário em uma festa que simulava e reafirmava a posição dominante dos brancos e a tradicional servidão dos negros no brasil, ou mais recentemente da vogue alemanha, que colocou uma modelo branca na capa de uma edição especial sobre a beleza negra e dentro da revista publicou a foto de naomi chinwig com uma legenda que a identificava como janaye furman (porque todas as negras são iguais, aparentemente), confirmam as bases racistas e a hegemonia branca das pessoas que fazem moda. gosto muito desse artigo de fabiana moraes que elucida as relações da moda e do glamour com a servidão e o racismo.
no entanto, o vestir-se não é, nem nunca foi, exclusividade da sociedade européia. não apenas o vestir-se, mas o atrelar significados a roupas, cores e acessórios, o criar uma expressão individual através do vestir, o querer fazer parte de um grupo ou afastar-se de padrões através do enfeitar-se. nada disso é invenção dos brancos – nós só transformamos o processo do vestir em mercado, em commodity, em produto completamente esvaziado de significado pra podermos, então, revendê-lo com significados aparentemente novos, originais e frescos.
precisamente por estar presente em qualquer sociedade em qualquer momento da história, o vestir-se, embora apropriado e sistematizado como mercado pelos brancos, ultrapassa barreiras financeiras e culturais e serve também, como resistência ao próprio sistema que criou a moda. roupa pode oprimir, reprimir e violentar, mas também pode libertar, expressar e cuspir em construções sociais que acreditamos como verdadeiras e imutáveis.
na nossa história recente, de sociedade colonizada e escravagista, moda foi desde o início um meio de estabelecer individualidade, poder e laços com suas origens para muitos dos negros da áfrica sequestrados e escravizados nas américas e na europa.
em seu livro “slaves to fashion: black dandysim and the styling of black diasporic indentity”, monica l. miller explora a história da moda negra na inglaterra e nos estados unidos e como os escravos se apropriaram de elementos sartorialistas brancos para impor sua identidade como indivídios, como grupo, e como voz unificada na grande diáspora do negro escravizado pelo mundo.
o livro descreve a relação do negro escravizado com suas roupas em dois momentos distintos e importantes.
num primeiro momento, o negro é esvaziado de referências e uniformizado: era comum que todos recebessem o mesmo tipo de camiseta puída e um par de calções, roupas destituídas de significado e de mensagem tanto no sistema estético dos colonizadores quanto dos escravizados. era como se ao vestirem essas roupas simples eles se despissem de seu passado, de sua humanidade, e se homogenizavam como os sub-seres que os brancos queriam enxergar. até para o negro escravizado, as vestimentas, ou falta delas, comunicavam ideias. era por isso que eles se apegavam a acessórios e resquícios de suas terras, como colares e pulseiras de contas e miçangas, que seguem usando por cima das roupas ocidentais que foram obrigados a vestir.
cecilius calvert, por gerard soest
esses acessórios servem como uma segurança, como uma prova física de que aquelas pessoas tinham e voltariam a ter autonomia cultural e poder de escolha. colecionar, manter e usar acessórios não convencionais à sociedade ocidental era ao mesmo tempo um resgate da memória de suas terras, um desafio à autoridade branca, uma afirmação de individualidade e um tipo de subversão. pra um povo que já não tinha nenhuma posse material e nenhum direito à sua história, ter pequenos objetos de adorno pessoal passava a ser de extrema importância.
james drummond, por john baptist de medina
num segundo momento, o negro escravo usa os símbolos da moda masculina européia para desmontar estereótipos sobre o negro ao demonstrar o mesmo comando estético, as mesmas referências, a mesma elegância e o mesmo refinamento de um homem branco. essa prática começou como uma imposição dos senhores de escravos: escravos, como outros objetos e posses de um homem abastado e de poder, precisavam ser fonte de ostentação e riqueza. um escravo doméstico bem vestido e educado era tão importante quanto ter uma casa ricamente decorada, ou possuir um conjunto de pratos e louças valiosas.
é nesse momento que nasce o dandy negro: fruto da vaidade de seus próprios senhores, que inadvertidamente os estavam oferecendo ferramentas de empoderamento através da moda. escravos fugidos eram muitas vezes descritos como tendo levado uma mala de roupas, contendo casacos, botas, camisas e coletes. roupa, ao contrário de hoje em dia, tinha valor: não tinha uma c&a em cada esquina, roupas boas eram caras – principalmente casacos, com botões de metal, madeira, pedra ou madrepérola, e feitos de lã, de linho, com forro e camadas internas pra garantir aquecimento, e botas, de couro, resistentes, confortáveis e importantes pra longas caminhadas – e eram as roupas certas que os permitiriam viver uma vida como homens livres em outros lugares.
quanto mais o povo negro se familiarizou com os signos de vestimenta do homem branco, mais conseguiu utilizá-lo em beneficio próprio, transformando-os em símbolos de sua própria individualidade e liberdade. a estética dandy se torna um dos mecanismos do homem negro pra voltar a se expressar através de suas roupas e aparências, depois de séculos afastados de suas próprias escolhas estéticas.
em alguns estados dos estados unidos a lei ditava minuciosamente que tipo de roupas os escravos poderiam usar, incluindo um parágrafo que afirmava ser proibido a um escravo usar qualquer tipo de vestimenta que denotasse posição social superior a sua, e outro que especificava os tecidos permitidos (normalmente baratos, em bege, cinza ou amarelado). portanto, se vestir com o senso estético de um dandy era uma maneira de ironizar as leis, combater a opressão – nem que fosse apenas estética.
a imagem do dandy é importante nesse aspecto de usar a moda para subverter normas: mesmo o dandy branco, extremamente confortável em sua posição de poder, riqueza e estabilidade, já representava um certo desapego a limites de gênero e sexualidade, já tinha um apego à vaidade considerado feminino demais para a época, já era rodeado por rumores de homossexualidade e um estilo de vida boêmio, já ameaçava, de certa maneira, o status quo que garantia as relações de poder – então era verossímil que a estética fosse usada para também borrar a linha entre o que era esperado de um homem negro e um branco.
o dandy negro é uma figura poderosíssima: com as próprias ferramentas de vestimenta do opressor, ele desafia idéias de masculinidade e feminilidade, agressividade, sexualidade e raça. ele evoca androginia e bi-racialidade através da performance, através da mensagem paradoxal que aquelas roupas transmitem quando usadas por um corpo negro.
uma vez que esses artistas passam a caminhar em esferas da sociedade onde normalmente pessoas negras não estariam, é preciso ter uma imagem que ao mesmo tempo denote igualdade entre brancos e negros – acesso a roupas de qualidade, ajustadas e com caimento perfeito, expressam bom gosto, referência cultural e poder aquisitivo – resgata a história do homem negro na sociedade eurocêntrica capitalista e o reafirma como homem negro obtendo sucesso em meio a pessoas que o prefeririam calado e serviçal.
é com essa premissa que vemos rappers como p. diddy reproduzirem a estética dandy, e pharell, que é mestre em balancear elementos dandy, elegantes, por vezes femininos, com elementos do hip hop, do street e da cultura negra americana. andre 3000 é outro músico que desafia as divisões de classe e raça ao se apropriar de um visual dandy, destacando sua individualidade e suas referências através de cores inusitadas e estampas, que batem de frente com as cores sóbrias da moda masculina clássica.
e há, também, os artistas que usam a performance dandy não apenas pra botas em cheque os limites raciais da sociedade mas também os sexuais: prince é o maior dandy andrógino moderno, e jimmi hendrix também apreciava uma androginia refinada em peças de roupas – estampas floridas, babados, veludo, lenços esvoaçantes… tanto jimmi quanto prince se utilizavam desses elementos pra trazer feminilidade à sua imagem.
os dandys negros do passado e da atualidade são a prova de que signos opressores podem ser transformados e utilizados a favor da luta por igualdade social – um sistema que funciona de performance e atuação de gênero e de raça muda pouco a pouco conforme personagens se impõem como performando algo inesperado – tanto até que vire natural. e a moda contribui enormemente para os movimentos de equilíbrio social, pois representa ideias sobre como devemos atuar de acordo com nosso gênero, raça e classe – quando passa a não haver mais limites entre quem pode usar o que, significa que as regras foram burladas.
do mesmo jeito que as mulheres se apropriam de elementos masculinos do vestuário a cada passo que dão em direção a igualdade (as calças sendo o maior exemplo), é possível que negros se apropriem de elementos europeus do vestuário para impor, também, sua posição em direção a igualdade. e os dandys são prova viva disso.
Fonte: https://www.repeteroupa.com/post/os-dandys-negros-moda-e-luta-social