Paulo Freire: a aderência ao mundo da opressão

No encontro de hoje do Ciclo de Estudos do Jardim Filosófico, conversávamos sobre Desejo e Colonialidade.

Há uma passagem da Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire que sempre me causou muita perplexidade: “os opressores são o testemunho de humanidade dos oprimidos”. Proseamos longamente sobre o significado íntimo dessa formulação freiriana.

Pois, para o Paulo, a situação de opressão não se mantém sem um ato de “aderência” dos oprimidos aos valores do mundo dos opressores. “Aderência” significa dizer que somos cúmplices da posição e das atitudes que mantemos, que intro-jetamos (jogamos pra dentro) valores que destroem nós e os nossos; que, em última análise, buscamos ser reconhecidos pelos olhares de quem representa o Poder. Somos seres duplos, guardamos o olhar do opressor em nós, hospedamos no nosso mais íntimo sua sombra.

No meio do nosso prosear, veio-me uma cena que descrevia muito bem essa duplicidade. Era uma sexta-feira, oito da noite, eu numa sala de aula com 3 alunos. O resto tinha faltado. Percebi que seria inútil passar matéria, e que, na verdade, aquela era uma boa oportunidade de tentar uma conexão de melhor qualidade entre nós. Decidi não passar matéria. Dois alunos batiam bola dentro da sala. No canto superior direito, uma câmera. A câmera – refleti – é a encarnação do próprio olhar do opressor. Impessoal, mecânico, onipresente, superior. Peguei-me na duplicidade: mas e se verem que não estou “dando minha aula”? Não vai pegar mal? Será que vão falar mal de mim? Ao mesmo tempo, uma revolta se incendiava em mim. Estou mesmo deixando o olhar da câmera pautar minha atitude como professor? Estou a serviço de quem, na real? Estou buscando o testemunho de quem? Será que esse “medo de pegar mal” não é só aderência ao mundo do opressor disfarçado?

Não foi a primeira vez que me fiz tais questões. É preciso nos perguntar todos os dias a serviço de quem educamos. Educamos para o contentamento dos pais? Para o da gestão? Para o fiscal da Secretaria de Ensino? Para obter o reconhecimento dos nossos pares professores?

Quais são os testemunhos que mais contam na nossa prática?

Essa aula acabou sendo muito mais interessante do que algumas aulas de conteúdo que eu tentei dar, ainda que fossem sobre temas muitíssimo relevantes e úteis. Conheci um pouco mais da história de cada um, um pouco de seu passado, de seus gostos musicais, de MC Kevin (que todos conheciam e admiravam), joguei um pouco de futebol com eles, dei risadas – convivi. Coisa da qual esquecemos cada vez mais.

Mas, mesmo sabendo, comigo, do valor desse momento de conexão, havia ainda uma parte em mim medrosa ou, no mínimo, receosa da repercussão desse abandono. Pode até ser que, no final, ninguém ligue, mas é essa a questão: ninguém melhor do que você mesmo para se vigiar.

As sombras em nós são muitas, os olhares têm pesos muito diferentes, e é muito fácil se confundir. Daí a importância de uma comunidade, de estar acompanhado, de ter um espaço de qualidade para o registro de experiências, escapando do registro precário do cotidiano da maioria dos nossos lugares de trabalho. Registro esse que acaba apenas por achatar e conformar a experiência a um círculo da eterna impotência, empobrecendo nossa prática, nossas experiências e o acontecimento do Outro, que deveriam ser o cerne da nossa prática.

Autor: Tarik Fraig
Fonte: https://jardimfilosofico.com/paulo-freire-a-aderencia-ao-mundo-da-opressao/

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