repetir roupa: a adoção de um uniforme como afirmação artística e política

faz pouco mais de três anos que acordei um dia e decidi que pelo ano inteiro eu ia repetir uma peça de roupa por semana, e registrar num blog todas as possibilidades de uso das coisas que eu já tinha no armário – ao mesmo tempo em que me proibi o consumi de supérfluos por um ano.

isso resultou no repete roupa, esse bloguinho lindo que agora cresceu, evoluiu e se transformou no meu cantinho pra falar de roupa e outras coisas que eu amo, tipo música e séries de tv. agora até colaboradores o repete roupa tem, isso é quanto a coisa cresceu pra fora do alcance dos meus bracinhos.

 
 

mas a real é que eu sigo repetindo roupa, embora não semanalmente, e essa narrativa da repetição e do uniforme segue me interessando demais. gente que repete roupa, da maneira que for, e quer falar sobre isso, é algo que eu acho legal demais. repetir roupa não tem grilo, todo mundo faz, mas a gente faz na trucagem, na discrição, não ostenta isso com um megafone e mostra pra todo mundo OLHA, TA VENDO ESSA CALÇA AQUI, GENTE? TÔ USANDO FAZ UM MÊS SEM PARAR! todo mundo repete roupa, mas TODO DIA é um negócio que pega mal.

lembro que, quando comecei, as reações negativas pela internet eram de dois tipos: gente me criticando porque “eu também repito roupa e não tô por aí fazendo blog sobre isso” ou gente me criticando porque usar a mesma roupa todo dia não era higiênico – seria eu uma petista peluda feminazi que não toma banho? eu ia repetir a calcinha todo dia também? essas foram perguntas que eu – real oficial – tive que ler.

ou seja, repetir é normal, falar sobre o assunto incomoda. repetir é normal mas em vezes espaçadas, todo dia direto é nojento. que loucura, de um jeito ou de outro tavam cagando regra na minha repetição.

mas, verdade seja dita, as pessoas que batem no peito e exclamam com orgulho “eu repito roupa e toma esse registro diário pra provar”, porra, essas são as melhores pessoas. e eu tenho evidência disso.

projeto 366

 
 
samantha canovas é artista e educadora e tá desde 1º de janeiro desse ano repetindo diariamente o mesmo macacão, que ela mesma confeccionou. a experiência dela é uma das mais legais que já vi – é uma performance artística. a partir de questionamentos sobre a materialidade da pintura, samantha se enveredou por experimentar com o têxtil. assim como eu quando comecei meu projeto de repetir roupa, ela também tá se posicionado contra o consumo: durante esse ano samantha também parou de consumir supérfluos.

o macacão, de linho e algodão (fibras naturais que deixam a pele respirar, são fáceis de lavar e evitam cheiro, características muito valiosas pra quem vai repetir todo dia a mesma roupa), é lavado frequentemente, mas uma das ideias de samantha é que ele sirva como uma tela em branco, uma pintura que surge espontaneamente ao longo do dia-a-dia e das experiência que ela vive. isso quer dizer que se manchar de um jeito que não saia na lavagem, isso faz parte da experiência.

tô curiosa pra ver como isso se desenvolve com o passar do ano, e especialmente interessada em relatos sobre reações diversas conforme o macacão passar a mostrar, visivelmente, sinais de uso e da vida que ele está movimentando. será que vão avisá-la que a roupa “tá suja”? será que vão perguntar se ela não tem “uma roupa melhor” ou mais nova ou em melhor estado? será que vão perguntar pra ela, como pra mim, se ela tá repetindo a calcinha o ano todo também? apenas perguntas que flutuam pela minha cabeça ao pensar que as pessoas, ao invés de enxergarem arte nas roupas e em outras pessoas, só enxergam o incômodo de ver regras sociais aleatórias – mas tão importantes pra tanta gente – serem burladas sem nóia e sem causar nenhum impacto negativo real na vida. imagina de repente perceber que tudo que a gente considera certo e imutável é, na verdade, sem sentido real? assustador.

the uniform project

11 anos antes de samantha e 8 anos antes de mim, sheena matheiken já tava repetindo o mesmo vestido por um ano. criação de sua amiga eliza statbuck, o pretinho básico, feito de algodão, foi desenhado pra ser usado com os botões pra frente, pra trás ou abertos, eliza fez 7 desses vestidos pra sheena, então tecnicamente ela não usou um único vestido todos os dias – a explicação é que assim ela evitaria odor e não seria acusada de falta de higiene.

a ideia de sheena era variar o uso do vestido com acessórios e uso de outras peças. esses itens vinham de segunda mão, brechós e, uma vez que o projeto ficou popular, de doações das seguidoras do blog, ó que legal! além de trazer mensagens sobre sustentabilidade e consumismo, sheena arrecadou dinheiro durante o ano em que repetiu roupa para uma fundação que oferecia uniformes e outros tipos de auxílio educacional para garotas em situação vulnerável na índia.

matilda kahl

matilda se lembra com nitidez de uma manhã, entre tantas parecidas, em que o stress de pensar na sua roupa de manhã a fez se atrasar pro trabalho e se sentir despreparada para uma reunião logo pela manhã. ela se perguntava se essas escolhias deveriam ser tão difíceis e por que, tendo tanta liberdade para vestir o que quisesse (como diretora de arte de uma agência ela não tinha um dresscode muito rígido), o que ela sentia era pânico todas as manhãs. matilda percebia que nenhum de seus colegas homens era levado menos a sério por conta de suas roupas, e duvidava que qualquer um deles passasse tanto tempo quanto ela pensando em seu look pro dia.

foi daí que surgiu a ideia de ter um uniforme de trabalho – algo que os caras já tem desde sempre, se chama terno. ela diz que para os homens isso é algo comum e, em algumas empresas, obrigatório, mas que as reações à escolha dela de vestir a mesma coisa todo dia para ir trabalhar foram curiosas. enquanto a maioria dos caras pode simplesmente usar a mesma roupa pra trabalhar, ela, enquanto mulher, precisava justificar essa escolha. as pessoas queriam saber por quê. por que ela tava fazendo isso? era uma aposta? uma promessa? regra de alguma seita? religião? pra matilda, a intenção era apenas eliminar pelo menos uma decisão que ela precisava tomar todo dia. uma escolha a menos, uma coisa a menos pra se estressar.

steve jobs / barack obama / einstein

o que matilda sentia não é por acaso: existe mesmo menos pressão para que homens pensem e gastem tempo em sua aparência e suas roupas. repetição de roupas não é reparada entre os homens porque nós fomos ensinados a prestar atenção na aparência das mulheres, e a atribuir parte do valor de uma mulher a como ela se apresenta e como está vestida.

 

já falei sobre a escolha de steve jobs por seu uniforme aqui – ele decidiu usar a mesma roupa todos os dias, um suéter de gola alta do issey miyaki, pra não precisar pensar, diariamente, em que roupa vestir. do mesmo jeito que a matilda kahl, steve eliminou de sua rotina o stress de uma decisão, que pode até parecer simples mas demanda tempo e atenção. a escolha de jobs por um uniforme é intencional, planejada pra passar uma mensagem de praticidade, conforto e roupa como não-prioridade. e pode até ser prático e confortável, mas o fato de que jobs teve que ativamente escolher essa estética mostra quão prioritária é roupa.

 
 
obama também já falou sobre usar o mesmo terno sempre e a ligação dessa escolha com sua produtividade. assim como matilda e steve jobs, para obama eliminar uma decisão de seu dia já facilita sua performance pelo resto das atividades. é claro que, em grande parte, obama está protegido, assim como jobs, pelo fato de ser homem. michelle obama já comentou que durante os dois mandatos do marido ela teve cada sapato, jóia e roupa que usou fotografados e analisados, enquanto ele usou o mesmo smoking em todos os eventos de gala aos quais compareceram e em 8 anos ninguém pareceu perceber.
 

einstein também era conhecido por usar o mesmo terno – na verdade, ter vários ternos idênticos, pra evitar desperdiçar energia tomando decisões relacionadas a roupa e poder focar sua potência mental em outros assuntos, notoriamente mais importantes.

não que eu concorde que roupa é, necessariamente, pouco importante, mas vocês percebem como, durante alguns séculos, as mulheres foram ensinadas a se preocupar unicamente com aparência? damos importância extrema a roupas, cabelo, maquiagem, e acabamos sem tempo e energia pra perceber nossa própria opressão. da mesma maneira, homens são ensinados a focar sua energia em qualquer coisa menos vaidade, e por isso durante tanto tempo foram os pioneiros em avanços científicos, políticos, sociais…. entende? deixa as mulheres bem ocupadas com revista de moda e tarefas domésticas, enquanto os homens dominam o mundo. não é a toa que moda virou “coisa de menina”.

dale irby

 

mas pra gente não terminar com o peso insustentável da nossa consciência de moda e sua relação com história e o papel da mulher, deixei pro fim esse causo que é uma das histórias mais legais de repetir roupa que eu já vi – e uma das que durou mais tempo também!

o professor de educação física dale kirby usou a mesma roupa de 1973 a 2012 – mas calma, não foi todo dia sem parar. em 73 ele tava usando uma camiseta e um colete no dia em que os funcionários da escola foram fotografados. no ano seguinte, ao receber as fotos, percebeu que, sem querer, tinha usado a exata mesma roupa. sua esposa o desafiou a fazer o mesmo no ano seguinte, e no seguinte, e no seguinte…. depois de 5 anos, ele decidiu simplesmente continuar. ó que maravilhoso! ele virou uma lenda e só parou de usar o look quando se aposentou – pois não ia mais precisar tirar fotos anuais na escola.

Imagem: Acervo Repete Roupa
Fonte: https://www.repeteroupa.com/post/uniforme-afirmacao-artistica-politica

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